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Fernando Gabeira despediu-se do PT por discordar de ações ou inações do
Governo Federal
14 out 2003
Brasília, DF - O Deputado Federal Fernando Gabeira usou a Tribuna da
Câmara dos Deputados hoje para despedir-se do Partido dos Trabalhadores.
No discurso, citou como exemplo de atitude a ser seguida o que aconteceu no Canadá, quando
o Governo chegou a eliminar a produção
inteira realizada com grãos transgênicos não permitidos, trazendo prejuízos a agricultores e à
Monsanto. A seguir, pela importância do personagem na história recente do país,
transcrevemos a sua fala, na íntegra:
"Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, estou na tribuna para comunicar
que deixei o Partido dos Trabalhadores. Portanto, saio da base do Governo para
atuação independente.
Hesitei muito em apresentar aos senhores um discurso escrito. Nos últimos
dias as idéias passavam muito rapidamente pela cabeça e os textos eram também
superados velozmente.
Saio do PT por algumas das razões divulgadas pela imprensa e não vou
repeti-las em sua totalidade. Uma saída não deve ser vista como um rosário de
lamentações. É preciso celebrar também algumas vitórias em comum. A mais
importante delas - apesar da distância física, meu coração estava com o Governo
- foi quando o Brasil decidiu condenar a guerra no Iraque.
Muitos temiam que os Estados Unidos iriam se sentir confrontados, mas era
uma aventura militar condenada ao fracasso, aliás, cotidianamente demonstrado
nos noticiários de televisão. Hoje podemos dizer que grande parte do povo
norte-americano, sobretudo o informado, consideraria a rejeição à guerra como
gesto de verdadeira amizade do Brasil com os Estados Unidos.
Para isso, Sr. Presidente, servem as decisões com visão de longo alcance.
No entanto, foi grande nosso desencontro numa questão de política externa:
Cuba. Era preciso denunciar as violações de direitos humanos; pedir pelo poeta
Raúl Rivero; por jornalistas e intelectuais presos; condenar a execução a toque
de caixa dos seqüestradores de um barco. Era preciso também falar com a oposição
cubana. Nada disso foi feito. E eram, na minha opinião, interesses nacionais que
estavam em jogo. Nada tenho contra afetos e gratidões pessoais. São admiráveis
faculdades humanas, mas não podem prevalecer sobre nossos interesses de Estado.
Aceitar a expulsão dos repórteres sem fronteiras do Conselho de Direitos
Humanos, em Genebra, foi também uma dor no coração. Se pudéssemos discutir o
assunto democraticamente, veriam que não é uma posição brasileira, mas uma ação
entre amigos e compadres.
A relação do Brasil com Cuba não pode ser reduzida a uma relação de amigos
e compadres, ela é muito mais complexa e muito mais importante para a nossa
estratégia.
Nossa política externa vive um grande sobressalto pela falta de pagamento
aos embaixadores e funcionários. Não há política externa que resista a esse tipo
de pressão cotidiana. Nesse momento da globalização precisamos de bons
funcionários no exterior, ampliar e melhorar as condições de nossa diplomacia.
Embaixadores e funcionários brasileiros assediados por credores não é o
tipo de serviço diplomático que nós queremos.
Mas há, no campo dos direitos humanos, uma questão fundamental para ser
introduzida e que me separa também do governo. É a questão da Guerrilha do
Araguaia, a questão do direito das famílias terem acesso à ossada de seus entres
queridos. É também a questão de termos acesso aos documentos históricos do país.
Essa é uma questão da democracia. A questão da família ter o direito de
recuperar a ossada de seus entes é uma questão da civilização brasileira.
As Forças Armadas estão convencidas disso e se um pequeno grupo de
militares não aceitar, nós temos de dizer claramente para eles que não
negociamos os princípios da civilização brasileira porque é um grupo de
militares insatisfeitos. 'Que vengan los toros', como dizem os espanhóis. Que
façamos como fizeram os chilenos e os argentinos que ajustaram adequadamente as
contas com o passado.
De todas as questões ambientais que me dividem no momento, na relação com
o governo, selecionei uma sr. Presidente, a medida provisória que autoriza a
plantação de sementes transgênicas introduzidas clandestinamente no Brasil. Se
tivéssemos o poder de realizar aqui uma teleconferência com 100 estadistas do
mundo inteiro e perguntássemos a eles o que fariam se plantassem um alimento
transgênico clandestinamente em seu país, eles responderiam uníssonos: 'Eu
apreenderia e tiraria de circulação'.
Isso foi feito no Canadá. O Canadá discutia dois alimentos transgênicos,
um que já estava autorizado e outro ainda em processo de exame. Quando surgiram
no meio ambiente canadense vestígios daquele que não estava autorizado, o
governo obrigou os plantadores a recolhê-los, eles tiveram prejuízos de US$ 12
bilhões, a Monsanto teve um prejuízo de US$ 24 milhões.
Mas qual era a mensagem implícita? A mensagem era a seguinte: O Canadá
autoriza a produção de transgênicos desde que passe pelos crivos do Estado, e
isso é uma questão fundamental que não foi examinada. Na verdade, quando o
governo cede nas questões, além da mensagem perturbadora que passa para os
outros, que põe em perigo o meio ambiente, ele se mostra realmente incapaz de
entender os tempos modernos.
Essa geração de políticos que agora chega ao governo ela ainda trabalha
muito com os critérios da produção e da distribuição de bens materiais, não
compreende que dirigir uma sociedade hoje, além de trabalhar a produção e
distribuição de bens materiais, nós trabalhamos a produção, a distribuição e a
administração dos riscos e isso nós não perdoamos ao governo brasileiro nem
perdoamos a elite do Rio Grande do Sul.
Obrigar o povo brasileiro a comer uma soja transgênica sem que haja um
rótulo avisando que essa soja é transgênica. E não me venham dizer que previram
isso nos artigos --porque isso está previsto-- mas eu estou falando da realidade
que nós todos conhecemos. Se alguém quisesse rotular a soja transgênica no RS
hoje, bastava controlar 15 empresas, nós já teríamos esse trabalho feito, mas
nada foi feito. Não há direito de obrigar os consumidores brasileiros a
consumirem um produto sem que saibam o que realmente estão consumindo.
O Presidente da República, num certo momento, disse que gostaria de
discutir as questões dos transgênicos apenas cientificamente. Mas senhores, se
nós reduzirmos a questão dos transgênicos à questão científica, nós vamos
abstrair a questão econômica, nós vamos abstrair a questão política, vamos
abstrair a questão social e vamos abstrair o fato também de que no alimento há a
questão cultural. Do ponto de vista estritamente científico, sr Presidente, não
há nenhuma contra-indicação ao canibalismo. No entanto, nós não comemos carne
humana. Pelo menos não havia contra-indicação ao canibalismo até o surgimento da
doença da vaca louca.
Eu trabalho nesta questão dos transgênicos com o princípio de precaução e
não com a síndrome do pânico. Nós temos condições de oferecer ao governo os
caminhos, mas é necessário que ele tenha interesse também de corrigir o erro.
Nesse momento, o que nós vemos no governo é uma incapacidade de perceber que
cometeu um grande erro, uma incapacidade de discutir com seus adversários uma
saída honrosa para esse impasse em que ele nos colocou.
Eu gostaria de usar também algumas palavras finais, sr. presidente, para
examinar criticamente a minha passagem por esta experiência comum.
Intelectualmente eu tinha a visão da precariedade do Estado e das circunstâncias
em que nos movemos. O domínio da política pela economia, a transformação dos
governantes em administradores do caos, vem dom próprio processo de
globalização. O que se viu no espaço aqui deste Parlamento tem comparação com as
bolsas de valores. As bolsas de valores são espaços onde as pessoas gritam e às
vezes tem uma psicologia de ordem. No entanto as bolsas de valores passaram a
prevalecer sobre as decisões que nós tomamos no Parlamento.
A irracionalidade prevalece sobre a racionalidade e nós políticos passamos
a ser funcionários do grande capital, tentando aplacar os seus sustos, as suas
neuroses e os seus medos. Ora, não era esse o caminho que eu queria trilhar.
Existe uma autonomia da política, existem políticos do século passado que têm
uma visão do conjunto, uma visão de longo alcance e aplicam essa visão em cada
circunstância de seu cotidiano. Mas quando se transforma num governo apenas
gerando os interesses do grande capital, apenas gerando os problemas da bolsa de
valores e correlatos, quando se transforma isso nós perdemos a visão do futuro.
Administrando um cotidiano nós passamos a nos preocupar apenas com as
eleições e estar no governo, mas a nossa geração não pode se contentar com
apenas estar no governo e dizer que quer continuar no governo. Ela tem de dizer
porque que está no governo, o que estamos fazendo no governo, o que queremos do
governo, e isso infelizmente não foi feito.
Eu poderia ter percebido isso, mas me deixei também levar pelo entusiasmo
popular e meu entusiasmo. Eu achei que havia uma saída para o Estado, mas eu
sabia que o Estado está em frangalhos, eu sabia que o grande capital nos deixou
uma margem mínima de atuação, mas achava que era possível criar. Mas hoje eu não
digo claramente que meu sonho acabou. Eu digo claramente que eu sonhei o sonho
errado, e o sonho errado foi confiar que nós podíamos fazer tudo aquilo que nós
prometíamos rapidamente e confiar que poderíamos fazer tudo aquilo num período
de quatro anos ou imediatamente. Não, o sonho foi pior ainda, foi confiar que
era possível transformar o Brasil a partir do Estado, foi não compreender que o
Estado já perdeu o dinamismo e que o dinamismo agora se encontra na sociedade.
Se o Brasil vai se transformar, será através da sociedade, é a sociedade que irá
impor os caminhos e o Estado virá, talvez cansado, talvez lento, mas virá
acompanhando o nosso caminho.
Eu quero dizer que eu fiquei muito triste até os dias passados porque eu
passei a partilhar desse erro da sociedade brasileira que era esperar um governo
salvador e ficar triste, amargurado porque o governo salvador não tomava as
medidas que nós esperávamos.
Aí eu recuperei a minha alegria quando disse 'Não, eu vou sair e vou
buscar os meus caminhos'. E com isso abri uma ampla clareira, pude respirar pela
primeira vez, estou respirando muito saindo desse clima sufocante das esperanças
negadas.
Eu gostaria de apresentar um quadro mais amplo, mas eu prometo novos
pronunciamentos através da minha atuação que eu acho que ficará mais clara a
visão do momento histórico que nós vivemos. quanto mais prolongarmos a cerimônia
do adeus, menos tempo teremos para tratar do próximo passo, o enfrentamento dos
temas urgentes como a questão dos transgênicos, já mencionada.
Como vossa excelência sabe, sr. presidente, eu apresentei um projeto de
Lei criando um território federal do Pantanal, que iria se separar do Mato
Grosso. e veja. E vejo o presidente dizer que há projetos de industrialização,
de exploração de minérios e outros no Pantanal. Olha, essas visões divergentes
são importantíssimas para o futuro do Brasil. O triunfo de uma ou outra
concepção é importantíssima para o futuro do Brasil. quando entrei no PT,
trabalhei com os verdes para se unirem aos trabalhadores eu raciocinava ainda
com um quadro europeu, eu pensava que o PT poderia desempenhar neste processo um
papel que a social democracia criou. Mas agora quando o PT chega ao governo,
vê-se que a perspectiva dos dirigentes é parecida com a dos dirigentes
comunistas do leste europeu. Uma visão de produtivismo estreita.
Então, a sucessão destes desencontros entre mim e entre muitos
companheiros do governo foi me levando à compreensão de que realmente essa
experiência da esquerda só poderia ser bem classificada numa frase do meu
querido companheiro e eleitor Cazuza: "É um museu de grandes novidades".
Eu deixo hoje portanto de pertencer a um partido e a um governo mas não
levo nenhum sentimento de separação. De uma certa forma todos estamos juntos
nessa trama que é a História do Brasil. Às vezes mudamos o papel, mudamos de
lugar, mudamos o figurino, mas vamos continuar sempre parte dela e como parte eu
quero dizer àqueles que às vezes se esquecem da longa caminhada que é a História
Do Brasil, que estarei aberto e disposto a ajudar na sociedade para o governo,
se não reencontrar seu caminho, pelo menos perder esse ritmo lento e exasperante
ao qual nos submeteu nestes primeiros nove meses.
Muito obrigado ser. presidente, muito obrigado a todos."
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Última
atualização: 13 outubro, 2003 - ©
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