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Lei que libera venda da soja transgênica fere princípios do direito ambiental

  • Procurador da República sugere fiscalização conjunta com instituições oficiais de crédito

  • A guerra jurídica reconhece competência do Rio Grande do Sul para fiscalizar e legislar sobre os transgênicos

 

EXCLUSIVO - EcoAgência de Notícias
09-jul-03

    A Lei 10.688 que autoriza a venda da soja transgênica plantada na safra 2002/2003 fere quatro princípios do direito ambiental: da prevenção, da precaução, do desenvolvimento sustentável e do poluidor-pagador.

     A advertência foi feita pela Coordenadora do Centro de Apoio Operacional de Defesa do Meio Ambiente do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, Sílvia Cappelli, durante a Terça Ecológica realizada pelo Núcleo de Ecojornalistas no dia 8 de julho de 2003 no auditório da Fabico/UFRGS em Porto Alegre (RS), com apoio do Sindicato dos Jornalistas do Rio Grande do Sul.

  Fábio Alves, Juarez Tosi (Coordenador do NEJ-RS) e Silvia Capelli na mesa dos trabalhos

    Já o Procurador da República, Fábio Alves, afirma que a forma como foram tratados a produção transgênica "é talvez um dos maiores erros coletivos que nós gaúchos cometemos. E uma das maiores afrontas ao Estado de Direito, à Democracia e ao interesse público”.  

Dra. Silvia Capelli

A lei que libera a venda da soja transgênica fere os princípios da prevenção e da precaução, pois está abrindo uma exceção para a safra 2002/2003. “Ou há perigo ou não há perigo. A questão é essa. Então só não há perigo nesta safra? Isto dá um argumento muito forte para os que sustentam que não há perigo. O próprio poder público, a quem cabe regulamentar e fiscalizar, diz que não há perigo, então não há perigo. Como vai haver perigo depois?”, questiona a Procuradora de Justiça Silvia Cappelli, Secretária-Geral do Instituto "O Direito por um Planeta Verde" (www.planetaverde.org).

    A prevenção é um princípio clássico do Direto Ambiental, presente em todos os instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente. Já o princípio da precaução é uma evolução. No princípio da prevenção para que haja responsabilidade é preciso que haja um dano efetivo ou potencial e um nexo de causalidade entre este dano e uma ação ou omissão. O princípio da precaução abstrai este nexo de causalidade porque ele diz que diante da incerteza científica de que uma atividade vai gerar um dano, o poder público deve adotar medidas para que o dano não ocorra.

    O Artigo 186 (Inciso II) da Constituição Federal fala que a propriedade rural cumpre a sua função social quando preserva o meio ambiente. “Se a legislação federal e estadual exigiam Estudo de Impacto Ambiental e está se liberando a soja para este ano está se ferindo também a função sócio-ambiental da propriedade e da empresa”, alerta Sílvia Cappelli, que também é professora de Direito Ambiental na Fundação Escola Superior do Ministério Público e no Curso de formação de Especialistas em Gestão da Qualidade Ambiental da PUC/RS.

    Por tabela, a Lei 10.688 também fere o princípio do desenvolvimento sustentável, pois não considera a variável ambiental e a preocupação com as futuras gerações. Com a liberação do licenciamento, também é ferido o princípio do poluidor-pagador, que determina a internalização dos custos de proteção ambiental.

Problemas da lei

    Estudo realizado pelo consultor legislativo José Cordeiro de Araújo foi citado por Capelli para questionar a Lei 10.688 que autoriza a venda da soja transgênica produzida na safra 2002/2003.

    A certificação é só para a comercialização da safra, deixando de fora as sementes. A lei deveria ser dirigida às áreas em que se verificou o plantio de Organismos Geneticamente Modificados (OGMs), e não o contrário.

    Além disso, nem a Medida Provisória 113 e nem a Lei nº 10.688 privilegiaram o agricultor que cumpriu a lei, e nem a indústria que não adquiriu OGMs, obrigando a todos a certificação e a rotulagem, aumentando o custo de todos.

    Desabafo

    A Procuradora de Justiça fez um desabafo aos ecojornalistas presentes na Terça Ecológica que analisou os aspectos jurídicos da liberação da safra de soja transgênica 2002/2003.

    “É um tema espinhoso, cujas soluções jurídicas não vão mudar a realidade. Estou pessimista. Eu acho que o caso do Rio Grande do Sul é pior do que o brasileiro. Esta situação é um desastre para nós. Houve muitas falhas. Nós não nos organizamos satisfatoriamente para criticarmos a polarização política que esta matéria resultou. Eu vim para esta Terça Ecológica arrastando uma bola de ferro, me sentindo derrotada no argumento lógico. Nós do Direito não podemos fazer nada se o Estado, se o Poder Público não agir. O que adianta entrar com uma Ação Civil Pública? Ou denunciar todo mundo? Havia necessidade de um mínimo de colaboração e de diálogo racional. Perdemos a racionalidade. Eu só posso lamentar”, disse a membro do Ministério Público.

    A Lei nº 10.688, de 13 de junho de 2003, está disponível no saite www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2003/L10.688.htm  .

Procurador da República sugere fiscalização conjunta com instituições oficiais de crédito

    As instituições oficiais de crédito, como o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, podem ser parceiras na fiscalização dos transgênicos. A proposta foi apresentada ontem (8/7) pelo Procurador da República Fábio Bento Alves durante a Terça Ecológica promovida no dia 8 de julho de 2003 pelo Núcleo de Ecojornalistas do Rio Grande do Sul para discutir os aspectos legais da liberação da venda da soja transgênica colhida na safra 2002/2003.

Dr. Fábio Alves

    “Eu compartilho com a avaliação da Procuradora de Justiça Silvia Cappelli de que legislação e medidas judiciais muito pouco vão poder fazer para modificar esta situação no Rio Grande do Sul. O problema da soja transgênica é uma ferida aberta. É talvez um dos maiores erros coletivos que nós gaúchos cometemos. E uma das maiores afrontas ao Estado de Direito, à Democracia e ao interesse público”, afirmou o Procurador da República que atua nas áreas do Meio Ambiente e do Patrimônio Cultural no Ministério Público Federal.

    Soja transgênica só com Estudo de Impacto Ambiental

    A decisão judicial da Ação Civil Pública do Greenpeace (www.greenpeace.org.br) e do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (www.idec.org.br) em Brasília que proibiu o plantio da soja geneticamente modificada sem o Estudo de Impacto Ambiental ainda está valendo. A decisão na Ação Cautelar Inominada foi confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região.

    Houve recurso da União, que é ré no processo juntamente com as empresas Monsanto e Monsoy, e defende a desregulamentação da soja transgênica. O processo está no Superior Tribunal de Justiça. O Ministério Público Federal atua no processo como fiscal da lei, através do Procurador da República Aurélio Virgílio Veiga Rios.

    O Procurador da República Fábio Bento Alves destaca a importância desta decisão judicial, pois a tese defendida pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança é favorável à desregulamentação. “O Parecer Técnico Conclusivo da CTNBio permite dispensar o Estudo de Impacto Ambiental”, explica.

    O representante do Ministério Público Federal ressaltou ainda que todos os estudos apresentados pela Monsanto no processos foram realizados nos Estados Unidos, onde a biodiversidade não tem a mesma riqueza encontrada no Brasil. E foi com base apenas nestes estudos que a CTNBio se manifestou pela desregulamentação da soja transgênica no Brasil.

    “A soja transgênica foi liberada para plantio em escala comercial, porém submetendo este processo a monitoramento. Quando o normal seria primeiro demandar testes e estudos para depois, se os resultados assinalassem, haver uma manifestação da CTNBio. O princípio da prevenção deve ser aplicado, mesmo que possa ir contra os interesses empresariais”, ressalta o Procurador da República Fábio Bento Alves.

Lei maquiavélica

    A Lei 10.688 que autoriza a comercialização da soja transgênica da safra 2002/2003 é maquiavélica. A avaliação é do Procurador da República Fábio Bento Alves. “Como ensinava Maquiavel no livro O Príncipe, ela faz todo o mal de uma única vez, e o bem aos poucos”, explica.

    Fábio Alves identifica aspectos positivos na lei, pois ela trata da reconversão das lavouras. Ela não permite que os agricultores guardem as sementes. “E quem vai fiscalizar?”, pergunta. Ao obrigar a rotulagem, a lei também reconhece que o consumidor deve ser informado.

    A legislação determina ainda que para o plantio das próximas safras deverão ser observados os termos da legislação vigente, especialmente a Lei de Biossegurança e o Código de Defesa do Consumidor. E demais instrumentos legais pertinentes.

    “E aí eu volto à Ação Civil Pública em Brasília que entendeu de modo categórico que os instrumentos legais relativos às leis de proteção ambiental se aplicam todos a esta questão de liberação de OGMs”, avalia Fábio Alves.

    O Procurador da República destaca o aspecto presente no Artigo 6° da Lei 10.688 que veda a instituições financeiras oficiais de crédito aplicar recursos no financiamento da produção, plantio, processamento e comercialização de variedades de soja obtidas em desacordo com a legislação em vigor.

    Para Fábio Alves, este artigo que toca na questão econômica pode ser o antídoto das questões econômicas que levaram os agricultores a se jogarem nos braços da soja transgênicas. O representante do Ministério Público Federal acredita ser possível trabalhar junto com as instituições oficiais de crédito como o Banco do Brasil e a Caixa Federal na fiscalização das lavouras.

A guerra jurídica:
STF reconhece competência do Rio Grande do Sul para fiscalizar e legislar sobre os transgênicos

    A Procuradora de Justiça Sílvia Cappelli apresentou na Terça Ecológica promovida pelo Núcleo de Ecojornalistas do Rio Grande do Sul o seguinte histórico sobre as questões jurídicas envolvendo os transgênicos:

  •     O Rio Grande do Sul foi o primeiro estado brasileiro a legislar sobre biotecnologia. A Lei 9.453 de 10 de dezembro de 1991 determinou que todas as atividades envolvendo engenharia genética deveriam notificar o poder público de seu exercício.

  •     No final de 1998, a Monsoy, empresa subsidiária da Monsanto do Brasil Ltda., solicitou ao Estado do Rio Grande do Sul, nos termos da legislação estadual de sementes e mudas, o credenciamento para um lavoura de 465 hectares de soja pré-básica no município de Não-me-Toque.

  •     O Estado do Rio Grande do Sul explicitando as medidas que deveriam acompanhar a notificação do poder público sobre as atividades de biotecnologia exigiu o Estudo de Impacto Ambiental através do Decreto 39.314 de 1999. Começava o conflito.

  •     A imprensa gaúcha publicou na época notícias sobre cárcere privado de funcionários da Secretaria Estadual de Agricultura que queriam exercer o poder de polícia administrativo fiscalizando as lavouras de transgênicos.

  •     A partir desta divulgação pela imprensa, em 1999, da existência de plantios geneticamente modificados provenientes de sementes trazidas da Argentina a Secretaria Estadual da Agricultura intensificou a fiscalização.

  •     Várias entidades, entre elas a Farsul, começaram a sustentar a incompetência constitucional do Estado do Rio Grande do Sul para exercer o poder de polícia, para fiscalizar estas lavouras e autuar estes agricultores.

  •     Ao mesmo tempo, várias leis municipais na região produtora de soja no Rio Grande do Sul foram promulgadas no sentido de condicionar o plantio de soja transgênica exclusivamente ao parecer técnico conclusivo da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio).

  •     O Ministério Público Estadual entrou com várias ações diretas de inconstitucionalidade contra as leis dos municípios de Cruz Alta, Jóia, Não-me-Toque, Redentora e Tupanciretã.

  •     Todas estas ações foram julgadas procedentes pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul dizendo basicamente que uma lei municipal era inconstitucional ao possibilitar o plantio de soja transgênica condicionada exclusivamente à autorização federal porque esta matéria extrapolava ao interesse local e portanto era inconstitucional.

  •     As empresas que se dedicavam à biotecnologia no Estado ingressaram com mandados de segurança contra a atividade administrativa exercida pela Secretaria Estadual de Agricultura.

  •     O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul tomou decisões díspares sobre este assunto na época.     Uma decisão, que foi um precedente muito interessante, teve como relatora a desembargadora Maria Isabel de Azevedo Souza. Ela disse que o parecer técnico da CTNBio destina-se a instruir pedido de autorização dirigido ao ministérios da Saúde, Meio Ambiente e Agricultura, não suprindo a exigência de licenciamento ambiental a cargo da autoridade competente. Por isso o parecer conclusivo favorável da CTNBio não faculta o exercício de atividade relacionada com Organismo Geneticamente Modificado (OGM), confirmando a necessidade da interdição procedida.

  •     A Monsanto alegava que havia uma hierarquia na imposição de sanções administrativas e que a Secretaria Estadual de Agricultura não poderia optar direto pela interdição. Teria primeiro que advertir, depois aplicar a multa simples, depois multa diária até chegar a interdição.

  •     A desembargadora Maria Isabel de Azevedo Souza disse que não. Nem sempre o poder público precisa esperar um resultado lesivo para poder tomar um ato de maior severidade. Se o assunto necessitar de um comportamento mais efetivo e mais grave por parte do poder público, o que era o caso, havia totalmente esta possibilidade de diretamente interditar.

  •     Este acórdão reconheceu a competência do Estado do Rio Grande do Sul para fazer a fiscalização e também para legislar.

  •     Teve um outro acórdão no sentido totalmente oposto dizendo que como a Lei de Biossegurança era posterior e dizia diferentemente do que a lei do Rio Grande do Sul (de 1991) então a superveniência de lei federal suspendia a eficácia da lei estadual. É uma questão de avaliação de competência concorrente.

  •     De um lado, o Tribunal de Justiça reconheceu a competência do Estado do Rio Grande do Sul e que havia espaço para o licenciamento ambiental em nível estadual. E de outro lado dizendo que a lei estadual tinha sido suspensa por lei federal posterior.

  •     O Ministério Público Federal ingressou no Rio Grande do Sul com várias ações civis públicas em Rio Grande e em outros municípios tanto em relação ao arroz irrigado transgênico, ao milho importado para ração animal e também com relação ao crime do artigo 13 da Lei de Biossegurança que é lançar organismos geneticamente modificados sem autorização ou em desacordo com autorização federal.

  •     Frustrada a tentativa de submeter a questão exclusivamente ao licenciamento federal, pois o Tribunal de Justiça entendeu que as leis municipais que liberavam o plantio da soja transgênica eram inconstitucionais, a Assembléia Legislativa resolveu fazer uma lei estadual que permitisse o plantio.

  •     O projeto-de-lei 214 do deputado Frederico Antunes que estabelecia a notificação ao Estado do Rio Grande do Sul a posteriori, revogando a lei de 1991 e o decreto 39.314 que exigia o estudo prévio de impacto ambiental, determinando ao estado a estrita observância dos requisitos federais para a liberação de organismos geneticamente modificados.

  •     Este projeto-de-lei foi vetado pelo governador Olívio Dutra, e o voto foi derrubado pela Assembléia Legislativa. A Procuradoria do Estado do Rio Grande do Sul ingressou em agosto de 2000 com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN 2303) perante o Supremo Tribunal Federal tendo como relator o ministro Maurício Correa.

  •     Foi deferida a liminar. Segundo informações obtidas no STF no dia 8 de julho de 2003, foi confirmada a liminar que suspendeu os efeitos desta lei de autoridade do então deputado Frederico Antunes. Hoje a competência do Estado do Rio Grande do Sul é reconhecida plenamente para legislar e fiscalizar. Esta decisão foi proferida no dia 23 de novembro de 2000 e é mantida até hoje.

  •     O STF por maioria, vencido o ministro relator, deferiu a suspensão cautelar da Lei 11.463 de 17 de abril de 2000 do Estado do Rio Grande do Sul. Portanto hoje não há nenhum óbice jurídico à fiscalização dos transgênicos.

  •     A competência para organizar-se administrativamente para exercer a fiscalização ambiental esta prevista no artigo 23 da Constituição Federal. É uma competência comum, cumulativa ou paralela. Tanto a União quanto os estados membros e municípios podem simultaneamente fiscalizar flora e fauna.

  •     Este artigo 23 tem uma previsão de uma lei complementar que viria disciplinar o chamado federalismo cooperativo, a forma de cooperação entre os entes da Federação de exercer estas competências. No entanto, esta lei complementar nunca foi promulgada.

  •     A competência para legislar está prevista no artigo 24 da Constituição Federal, e é uma competência concorrente entre a União e os estados membros. Podem determinar o licenciamento e o Estudo de Impacto Ambiental, e também realizarem a fiscalização ambiental no caso dos transgênicos, tanto a União, os municípios e os Estados. E podem legislar sobre esta matéria a União e os Estados.

  •     Os superpoderes da CTNBio - Os superpoderes da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança também foram muito discutidos. A CTNBio advogava a tese de que o seu Parecer Técnico Conclusivo vinculava todos os demais órgãos. Na verdade, existem várias competências simultâneas nesta matéria.

  •     O Ministério da Agricultura faz a avaliação de eficácia agronômica e o registro no Serviço Nacional de Proteção e Cultivares. O Ministério da Saúde faz a avaliação da segurança alimentar através da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. O Ministério do Meio Ambiente faz a avaliação de impacto ambiental. Existe uma resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) específica sobre licenciamento de OGMs. E também o Ministério da Justiça, através do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor, no que se refere à rotulagem dos produtos geneticamente modificados.

Roberto Villar Belmonte é repórter da EcoAgência -  roberto@ecoagencia.com.br . Fotos de Carlos Stein - stein@ecoagencia.com.br 


Última atualização: 06 setembro, 2011 - © EcoAgência de Notícias - NEJ-RS e PANGEA
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