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Vítimas do Césio
estão perdendo direitos
e caindo no esquecimento

 

De: - EXCLUSIVO - EcoAgência de Notícias
Data: 27-jan-03
Hora: 13:34:09

Oderson Alves Ferreira
Foto de Cláudia Viegas - claudia@ecoagencia.com.br

As vítimas da tragédia ocorrida em setembro de 1987 em Goiânia, depois que uma cápsula de Césio-137 foi inexplicavelmente “abandonada” nos escombros do Instituto Goiano de Radioterapia, carregada para uma oficina de sucatas e desmontada, e teve os fragmentos do material radiativo distribuídos entre dezenas de pessoas, inclusive crianças, estão, aos poucos, caindo no esquecimento.

 Mas este não é um esquecimento qualquer: é, sim, o esquecimento da dignidade, do senso comum de justiça e da verdadeira história que as autoridades brasileiras encobriram a respeito das dimensões e responsabilidades pelo ocorrido.

Enquanto concedia entrevista à Ecoagência, no último sábado, na sede da Associação Médica do Rio Grande do Sul (Amrigs), em Porto Alegre, o ex-motorista de ônibus Oderson Alves Ferreira, 47 anos, recém havia sido avisado por sua mulher, por telefone, de Goiânia, que o direito à condução gratuita do hospital para casa e vice-versa, para menores de cinco anos e idosos seqüelados pelo Césio, estava sendo extinto. Poucos meses antes, em outubro, a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) havia cortado parcialmente o fornecimento de medicamentos especiais para essas pessoas. “Quem recebia duas caixas de medicamento por mês, passou a receber apenas uma”, explicou.

O descaso das autoridades, no entanto, não é a maior mágoa de Oderson. Ele se ressente muito mais da discriminação por que passou e ainda passa na cidade. Sua casa e todos os seus pertences viraram lixo radiativo. Seus animais – pássaros, cães, porcos – morreram ou foram sacrificados. Sua família chegou a ser apedrejada por vizinhos depois que eles souberam do acidente.

A Polícia teve que escoltá-los para possibilitar a mudança. Emprego ele não tem desde que foi tachado de radioacidentado, aos 32 anos. “Tenho uma área de uns 42 metros quadrados na minha casa, onde já coloquei bar, mas ninguém freqüentava. Depois mudei para uma fruteira, mas foi a mesma coisa. Fiz curso de costura, tenho máquinas, sou costureiro profissional, eu e minha mulher, mas também isso não deu certo. O que mais me revolta é que nos tiraram o direito de trabalhar, de sermos produtivos. Hoje eu me sinto um parasita”, desabafou.

Irmão de Devair Ferreira, dono da oficina mecânica onde a peça de Césio foi desmontada, e pai da menina Leide Alves Ferreira, uma das primeiras vítimas fatais do acidente, que morreu aos seis anos, depois de ingerir fragmentos radiativos, Oderson lembra que sua vida “teve uma reviravolta”, mas para pior, desde que o pesadelo começou, naquele setembro de 1987.

Ele teve contato direto com o Césio por menos de dois minutos. Foi o tempo que levou para receber um pequeno fragmento do irmão, que mostrava para todos aquela “coisa muito bonita, que irradiava uma luz azul”, colocá-lo na palma da mão esquerda e friccioná-lo com o indicador da mão direita. Só nesse ínterim, Oderson absorveu 100 rads de radiação, surpreendentemente, muito mais que um ser humano poderia suportar. Então passou por um processo lento de formação de bolhas e feridas, que só notou oito dias depois.

“Tinha gente que vomitava, apresentava coceiras no corpo. Mas eu não senti nada, trabalhei ainda até o dia 30 de setembro daquele ano, carregando umas mil pessoas por dia, entre Aparecida e Goiânia”, contou. Além de passageiros, Oderson contaminou, involuntariamente, todo o pessoal de sua casa: “Na minha família, foram 30 pessoas atingidas diretamente”.

Problemas genéticos: agora vem o pico

De acordo com cientistas, o pico dos efeitos da radiatividade, na genética humana, começa a aparecer cerca de 15 anos após a exposição. Em setembro de 2002, fez exatamente 15 anos do acidente de Goiânia. Para a família de Oderson, contudo, os danos às futuras gerações já estão aparecendo. “Tenho uma filha de 16 anos (ela tinha seis meses na época do acidente) que não pode fazer Educação Física no colégio, porque seus ossos doem terrivelmente. Tenho uma netinha que nasceu com peso e estatura abaixo do normal, e um outro que nasceu com um pezinho e uma mão dormentes”, relatou.

Problemas de osteoporose, conforme Oderson, são comuns em radioacidentados – homens ou mulheres – bastante jovens. A hipertensão é outro sintoma comum ente essas vítimas. “A radiação não tem uma doença específica, mas, infelizmente, ela agrava todas as outras doenças. Ou seja, um simples resfriado em você, em mim seria uma gripe terrível”, observou.

Pior mesmo, segundo ele, é a depressão e o isolamento por que passam as vítimas. “A maioria dos jovens daquela época caiu nas drogas ou na bebida. Muitas meninas engravidaram muito cedo, com 12, 14 anos. Não há como você reunir as pessoas acidentadas porque elas mesmas se discriminam. Eu mesmo, estou aqui falando com você, mas não sei o que você pode estar pensando. Sempre fica essa sensação de insegurança em relação aos outros”, reconheceu.

A falta de apoio se intensificou depois da extinção da Fundação Leide das Neves (Funleide), criada meses depois do acidente para aproximar as vítimas do Césio e dar-lhes assistência médica até a terceira geração. “O objetivo era fazer um acompanhamento sistemático das condições de saúde dessas pessoas, com a realização de exames periódicos. Só que o governo do Estado de Goiás extinguiu a fundação em 1999.

Segundo eles, a Funleide tinha que ser extinta por causa de uma reforma administrativa. Com isso, criaram a Superintendência Leide das Neves, mas sabemos que ela é muito mais frágil, é apenas um apêndice”, esclareceu. Atualmente, o que sobrou dessa instituição é um assistencialismo, com a concessão de pensões que vão de R$ 130 a R$ 800. “Não sabemos explicar por que uns recebem mais, outros menos. Eles dizem que é conforme o tipo de seqüela, mais ou menos incapacitante para o trabalho”, afirmou Oderson.

CNEN mentiu para o povo e para funcionários públicos

Mentira e ignorância. Esta dupla foi o pano de fundo das ações das autoridades, especialmente as da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), logo depois do acidente com o Césio-137.

O promotor Marcus Antônio Ferreira Alves, da promotoria de Defesa do Cidadão de Goiânia, passou a receber denúncias de soldados que foram recrutados para trabalhar na demolição das casas de pessoas atingidas pela radiatividade. Muitas delas adoeceram e morreram logo. Outras, como Devair, morreram em profunda depressão – no caso dele, a morte da sobrinha Leide e da esposa, a sensação falsa de culpa, a rejeição e o abandono foram a receita para a recaída no álcool. Devair morreu de cirrose em 1995. Houve ainda centenas de pessoas que passaram meses a fio no hospital para “descontaminação”, como foi o caso de Oderson.

Pior que a ignorância – o próprio ex-presidente da CNEN, Rex Nazaré, aparecia em público, pedindo ajuda da Agência Internacional de Energia Atômica (IAEA) –, o que fulminou muitas pessoas foi a má fé. Segundo Ferreira Alves, a CNEN utilizou muitos “falsos técnicos” nos trabalhos de limpeza, dando a entender que eles eram físicos ou especialistas em radiação. Além disto, bombeiros e funcionários da Defesa Civil foram acionados para trabalhar na demolição e retirada dos rejeitos tendo sido informados de que se tratava de um acidente com gás liquefeito de petróleo (GLP).

“A CNEN recrutou trabalhadores braçais do setor público para trabalhar nessas atividades, alguns deles eram de canteiros de obras da cidade. Havia pelo menos uns 120 homens da construtora Andrade Gutierrez”, assinalou o promotor. De acordo com ele, muitas dessas pessoas foram escondidas e não receberam acompanhamento médico. Pelo menos duas delas – soldados da Polícia Militar – tiveram tumores cerebrais depois de trabalhar nas operações de limpeza, foram aposentados, mas não tiveram promoção de patente, como costuma acontecer em casos de aposentadoria por invalidez ou doença, no meio militar.

Os testemunhos do que ocorreu com os dois soldados estão gravados em filme-documentário realizado com depoimentos das próprias vítimas pelo jornalista Weber Borges e pelo cineasta Luiz Eduardo Jorge, que agora prepara um longa-metragem e busca apoio para esse projeto. Uma outra vítima da radiação é o cineasta Roberto Pires, que gravou o filme Césio-137, O Pesadelo de Goiânia, com atores como Joana Fomm e Stephan Nercesian, entre outros. Pires morreu de câncer em 2001. Muitos jornalistas também ficaram doentes por causa da exposição ao investigarem e cobrirem o caso.

Experiência jogada fora

Além de se sentirem cobaias humanas, as vítimas do Césio acreditam que o evento não serviu para qualquer aprendizado por parte das autoridades. “Aquilo que aconteceu em Goiânia poderá acontecer a qualquer momento em qualquer outro lugar no Brasil. Nós percebemos que as autoridades não tiraram proveito da situação, não aprenderam nada com o acidente.

Os médicos não aprenderam nada, pois não foi feito qualquer tipo de pesquisa. Se você perguntar aos médicos que trabalharam conosco nesses 15 anos o que a radiação pode fazer ao ser humano, eles não saberão responder porque não foi feito nenhum tipo de estudo. Eles não fizeram o acompanhamento comparativo entre as doenças que a população tem e que a população radioacidentada apresenta.

Só agora é que estão pensando em fazer uma pesquisa desse tipo, mas já se perdeu muito da chance de encontrar nexo de causa e efeito entre a exposição e as doenças”, destacou Oderson. De acordo com ele, houve não 200 a 400 vítimas, como relatam dados oficiais, mas pelo menos uns 1,5 mil contaminados, segundo registros da Promotoria Pública de Goiânia.

Energia nuclear: uma caixa-preta

O uso da energia nulcear no Brasil, conforme o promotor Marcus Ferreira Alves, ainda é uma caixa-preta. Ele garante que existem estudos realizados na ex-URSS com vítimas de radiatividade até a sexta geração, mas essas pesquisas estão em Cuba e não são divulgadas. “O meio militar está encobrindo o uso desse tipo de energia e ainda há forte lobby no Congresso para que essa questão não seja mais discutida pela população”, atestou.

O promotor ressaltou que as autoridades vêm sendo cobradas quanto a essa questão, mas desconversam. No ano passado, segundo ele, repórteres indagaram ao candidato José Serra sobre a sua atitude em relação às vítimas do Césio. “Soubemos que, devido a essa pressão, o comitê eleitoral desse então candidato chegou a montar uma oficina para discutir o assunto, mas tudo acabou depois das eleições”, lamentou.

A imprensa, apesar de ter um papel fundamental para não deixar que o caso do Césio-137 seja apenas uma página dolorosa da história ambiental e humana do Brasil, também poderia corrigir algumas de suas atitudes. Conforme Oderson, “não há o que criticar na ação da imprensa, a não ser que ela, muitas vezes, acredita mais nas autoridades do que nas vítimas, ou seja, tudo o que dissemos é depois desdito ou amenizado por autoridades, e, no final, vale mais a versão delas”.

Cláudia Viegas, claudia@ecoagencia.com.br- © EcoAgência de Notícias, janeiro 2003 - http://www.ecoagencia.com.br .


Última atualização: 06 setembro, 2011 - © EcoAgência de Notícias - NEJ-RS e PANGEA
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