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Declaração de Porto Alegre pelo Aquerenciamento Planetário
A seguinte Declaração foi lida pelo Professor Celso Marques no
início dos trabalhos da Conferência de Fritjof Capra, no Auditório Araújo
Vianna, em Porto Alegre, no sábado, 25 de janeiro de 2003, tendo sido longamente
aplaudida pelas mais de 3 mil pessoas presentes ao evento. Veja
fotos do evento.
Temos na
paisagem do
Pampa riograndense
um
pássaro chamado
quero-quero,
que é considerado a
sentinela do
Pampa. O
quero-quero,
diferentemente de outras
aves, faz os
seus
ninhos no
chão, vivendo a
maior
parte do
tempo
em
contato
com a
terra e apegado ao
lugar
onde vive. A
este
lugar
em
que o
quero-quero,
outros
bichos e o
próprio
ser
humano costumam
ficar, no
linguajar
gaúcho
nós chamamos de “querência”.
Em
português esta
palavra se reporta ao
verbo
querer. A
querência é
um
lugar
que tem uma
vontade,
um
querer
originário,
conforme a
própria
etimologia da
palavra indica.
Mas
não é
um
querer isolado e separado do
querer
humano, dos
animais e das
plantas
que
ali vivem. O
querer da
querência requer o
querer de
tudo o
que
ali vive, de
tudo o
que
pertence ao
lugar,
inclusive a
paisagem.
Ser apegado a
um
determinado
lugar é
ser aquerenciado. O
processo de se
apegar a
um
lugar se
expressa
com o
verbo “aquerenciar”.
Ser aquerenciado significa
também
estar de
bem
com a
vida,
estar na
posse da
plenitude do
sentido da
vida. Na
sabedoria camponesa
aqui do
sul do Brasil, da Argentina e do Uruguai, do
gaúcho, a
felicidade é o
próprio
sentido de
pertencer a
um
lugar.
A
querência é a
intimidade
com a
natureza e
com as
coisas do
local
em
que se vive. É
ser
parte das
histórias das
pessoas, dos
animais e das
plantas de
um
lugar. É
ter a
própria
identidade
pessoal, a
própria
história
individual,
inseparável de
toda a
teia destas
histórias. É
estar
em
casa no
mundo.
Por
outro
lado a
pessoa
que é
infeliz,
que
não encontrou o
seu
lugar no
mundo,
que está de
mal
com a
vida, é “desaquerenciada”. A
pessoa desaquerenciada
não tem
paradeiro
fixo, vive inquieta,
sempre a
procura de
um
outro
lugar, insatisfeita, angustiada, no
estado de
carência, de
falta. Na
perspectiva da
sabedoria
gaúcha, o
problema
ecológico é a
humanidade
estar desaquerenciada da
Mãe
Terra, da Pachamama, de
Gaia, a
suprema
morada do
homem.
O
Fórum
Social Mundial é a uma
tentativa
planetária de
aquerenciar a
humanidade na
Terra.
Mas
para
que
isso aconteça,
cada
ser
humano deve
ser
alerta e
vigilante
como o
quero-quero, deve
exercer a
sua
condição de
cidadania
planetária defendendo a
Terra e a
Humanidade
em
cada
local
onde vive.
Cada
cidadão do
mundo pode se
inspirar no
exemplo da
sentinela do
Pampa: ao
pressentir a
aproximação de
um
perigo, o
quero-quero dá o
alarme,
começa a
gritar o
canto
que deu
origem ao
seu
nome e a
fazer
investidas
contra o
intruso
através de
vôos
rasantes.
Para
nós,
ecologistas
gaúchos, o
quero-quero é o
símbolo da
soberania
política e da
cidadania
planetária
que o
movimento
ecológico
gaúcho vem ajudando a
instaurar no
mundo na
busca da sustentabilidade.
Como o
quero-quero, os
ecologistas
gaúchos
através da
ação de
pioneiros
como o
Padre Balduíno Rambo, Luís Henrique Roessler, José
Lutzenberger e
outros, começaram a
chamar a
atenção do Brasil e do
mundo
para o
perigo e a inviabilidade
ecológica da
cultura
ocidental. A
hegemonia mundial do
modelo civilizatório
ocidental,
antropocêntrico e eurocêntrico, é
inseparável dos
processos de
dominação ecocidas e etnocidas do
colonialismo e do neo-colonialismo promovidos
pelos
países do
Hemisfério
Norte.
Fundada
em
abril de 1971,
em
plena
ditadura,
sob a
vigilância dos
órgãos de
informação e de
repressão do
regime
militar no Brasil, a AGAPAN,
Associação
Gaúcha de
Proteção ao
Ambiente
Natural e
seus
ativistas correram
riscos ao
colocar
em
prática o
lema
inaugural do
movimento
ambientalista: “Pensar
globalmente e
agir
localmente”.
Como o
coração da
terra pulsando na
batida do “bombo
legüero”
que atravessa as
léguas da
planura pampeana, fomos
ouvidos. Numerosas
entidades
ambientalistas foram criadas, no
Rio
Grande do
Sul, no Brasil e
em
todo o
mundo. Ao
longo das
décadas descobrimos nas
particularidades da
cultura camponesa
gaúcha as raízes ecológicas da
nossa
identidade
local e
regional
como
dimensões de universalidade. O
movimento
ecológico
gaúcho inaugurou no Brasil uma
concepção
planetária de
cidadania e de
soberania constituídas
pelo
sentido de
ser
parte do
mundo
através do
cuidado
com a
natureza e da participação na singularidade da
vida
em
cada
local.
Para
nós o
quero-quero simboliza a
vigilância
ecológica
como
dimensão constitutiva do
sentido da
vida e dos
fundamentos autopoiéticos da
democracia e do
poder
político.
A
cidadania
planetária e a
dimensão
local
são constitutivas do
movimento
ecológico
como
novo
paradigma
político. É
por
isso
que a
querência e o
quero-quero
são
símbolos
universais do
horizonte
para
onde se dirige a
caminhada do
movimento
ecológico
em todas as
latitudes. O
movimento
ecológico e o
novo
projeto de
civilização
que
nós estamos criando, voltado
para o
equilíbrio, a sustentabilidade, a
diversidade cultural e a
biodiversidade, baseia-se no
paradigma da complexidade e da
interdependência. A
ecologia abre
um
novo
horizonte de
solidariedade
que supera e relativiza os
valores,
visões de
mundo, as
concepções de
política e as
ideologias geradas
pela
cultura
ocidental. O
paradigma da complexidade
não é
excludente. O
movimento
ecológico
não é uma
luta
entre o
bem e o
mal. E a
cultura
ocidental é
necessária
mas,
certamente,
não
suficiente
para a
superação da
crise
ecológica
planetária
que
ela gerou.
Nós,
povos colonizados
pela
cultura européia, devemos
renovar
nossa auto-estima,
respeitar e
buscar
inspiração
nos
conhecimentos,
experiências e
valores de outras
culturas. Russel Means,
índio lakota
norte-americano, afirmou: “Cristãos,
capitalistas,
marxistas,
todos
eles tem sido
revolucionários
em
suas próprias
mentes.
Mas
nenhum deles propõe
realmente a
revolução. O
que
eles propõem
mesmo é a
continuação.” No
caso, a
continuação da
supremacia do etnocentrismo
europeu
através da
continuação do neocolonialismo no
mundo
através da
força e da
persuasão.
Um dos
mecanismos culturais
básicos do neocolonialismo é o eurocentrismo
que
mina a auto-estima, a
autoconfiança e a
autodeterminação dos
indivíduos e dos
povos, colonizando as nossas
mentes
com
um
olhar
que desaquerencia e
nos coloca
fora do
mundo e do
lugar
em
que estamos.
Este
não sentir-se
em
casa no
mundo, esta
busca de
um
ideal de
felicidade desaquerenciado da
Terra,
principal
produto de
exportação cultural do eurocentrismo, faz
com
que
nos sintamos
inferiores,
infelizes e
dependentes. Significa a
própria
perda do
sentido da
vida na
sua
dimensão
ecológica e
política.
O desaquerenciamento
planetário
imposto
pelo neocolonialismo
ocidental se
alimenta da
exclusão e da simplificação demonizante da
complexidade
natural e dos
conflitos do
mundo,
em
nome de
um
futuro
abstrato
sem
presente. O
dito “subsesenvolvimento” tem imensas
vantagens
que é
indispensável levarmos
em
conta
para a
superação do neocolonialismo.
Não queremos e
não podemos
nos
dar ao
luxo de
adotar o
modelo de
um
projeto de
civilização
insustentável e
inviável, ecocida e etnocida.
Nós,
povos do
Hemisfério
Sul,
não temos
necessidade e
ainda temos
condições de
evitar as
ilusões e os
erros
que culminam na
sociedade de
consumo
como
ideal de
civilização.
Efetivamente,
com
toda a
nossa “miséria” e
nossa “pobreza”,
temos
patrimônios
naturais e culturais de
um
valor
incomensurável
que
nos colocam
muito
mais
próximos da sustentabilidade
ecológica e da
plenitude do
sentido da
vida do
que
nossos
irmãos do
Norte. Na
realidade, é o
Hemisfério
Norte
que depende
vitalmente do
Hemisfério
Sul e
não o
contrário.
O
caminho
para a sustentabilidade
ecológica
passa
pela
superação do neocolonialismo dos
povos do
Hemisfério
Norte
sobre o
Sul e
pela
criação de uma
ordem
política
internacional de
fato
solidária. A
superação da
condição neocolonial exige a re-significação de
todas as
instituições
sociais do
mundo
dito “civilizado” à
luz do
paradigma
ecológico e
democrático. A
civilização desenvolveu
um
conjunto
prodigioso de
instituições
que
não conseguem
atingir os
objetivos
para os
quais foram criadas. Vemos
atualmente
estados
sem
legitimidade
ou
sem
soberania atuando
como
enclaves
nacionais a
serviço do neocolonialismo. A
humanidade corre
sérios
riscos
para a
sua
sobrevivência, no
atual
processo civilizatório se
não
reavaliar e
redimensionar o
papel do
Estado
como
principal
instituição gestora da
condução deste
processo.
Não podemos
mais
aceitar o
poder dos
estados
nacionais,
tanto do
mundo
dito “desenvolvido”
como dos
países
ditos “emergentes”,
que se colocam a
serviço das
corporações
transnacionais
com
suas
imposições
nos
campos
jurídico,
tecnológico,
econômico,
político, cultural,
educacional e da
mídia. A
problemática do patenteamento dos
seres
vivos, da transgenia, da
destruição das
florestas
tropicais, da
diminuição da biodivesidade, das mudanças
climáticas, da
poluição dos
oceanos e da
estratosfera,
bem
como a
destruição de
culturas tradicionais, evidenciam o
papel
perverso dos
estados
para a
crise
ecológica.
Além das
intervenções das
grandes
corporações
nacionais e
transnacionais na
soberania dos
estados
nacionais, temos
instituições
tais
como o FMI , a OMC, a ALCA, o
BANCO MUNDIAL drenando
recursos dos
países
pobres
para os
países
ricos
através dos
estados e
contra os
interesses das
nações.
Toda esta
problemática é
extremamente
complexa e
escapa do
domínio
público. A
formação de
Redes de
Solidariedade e a participação no
movimento
ecológico e
social
em
nível
local e
regional é
indispensável
para
mobilizar a
população e
reverter
este
quadro de
desinformação.
A
presença de
ecologistas e de
ativistas de
movimentos
sociais de
todo o
mundo no
Fórum
Social Mundial
em
Porto
Alegre evidencia a
dimensão de
força e
legitimidade constitutivas da participação no
poder
local
como
campo de
exercício da
cidadania
planetária. Esta é a
verdade do
lema do
movimento
ecológico: “Pensar
globalmente e
agir
localmente”.
Para
nós, do
movimento
ecológico
gaúcho, o FSM pode
ser comparado
com uma
revoada de
quero-queros
que espalha
pelo
mundo o
grito de
alerta
para o aquerenciamento da
humanidade no
seio da
Mãe
Terra.
Um
novo
mundo é
possível.
Assinam as entidades AGAPAN -
Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural, CEA - Centro de Estudos
Ambientais, Movimento Roessler de Defesa Ambiental, e Núcleo dos Ecojornalistas
do Rio Grande do Sul - NEJRS.
Última atualização:
06 setembro, 2011 - ©
EcoAgência de Notícias
- NEJ-RS e PANGEA
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