Por dentro do Workshop Internacional de Ataques de Tubarões
15 de julho de 2004Por Marcelo Szpilman*Parecia estarmos revivendo uma das poucas situações factíveis do filme “Tubarão”, de Steven Spielberg. A tentativa de solucionar um problema real e imediato - ataques de tubarão com mutilações e mortes - com os mais diversos e conflitantes interesses sendo defendidos por seus representantes. Ao contrário da ficção, onde empreendeu-se uma insana caçada aos tubarões, o bom senso prevaleceu, felizmente.No salão nobre da Universidade Federal Rural de Pernambuco, cerca de 400 pessoas, incluindo os maiores especialistas em ataque de tubarões no Brasil e no mundo e os membros do Comitê Estadual de Monitoramento de Incidentes com Tubarões (Cemit), passaram dois dias inteiros (8 e 9 de julho) no II Workshop Internacional de Ataques de Tubarões discutindo, de forma absolutamente democrática, a questão que hoje aflige a população da Grande Recife.Composto por representantes dos mais diversos segmentos da sociedade, e coordenado pelo engenheiro de pesca Fábio Hazin, o Cemit foi criado em maio de 2004 com o objetivo de discutir, deliberar e implementar as ações recomendadas pelo I Workshop, realizado em 1995. O Cemit, então, estabeleceu quatro importantes ações iniciais: campanhas educativas nas praias, fiscalização, orientação e segurança nas praias, pesquisa e monitoramento dos tubarões e a unificação dos números de ataques em Recife.Os números de ataques no litoral pernambucano há tempos geravam discussões. Para o período de 1992 a 2004, o Corpo de Bombeiros dizia que eram 49 ataques com 14 mortes. A UFRPE relatava 44 ataques com 13 mortes, enquanto o IML apresentava 97 ataques com 63 mortes. No final de maio, após um exaustivo dia de reunião entre os representantes dessas entidades, os dados foram unificados em 44 ataques com 16 mortes.Por iniciativa dos estudantes do PET-Biologia da UFRPE, contando com o apoio e a promoção do Departamento de Pesca da UFRPE, do Cemit e do Governo do Estado, o II Workshop foi criado para levantar a discussão do problema na comunidade acadêmica e servir de instrumento de avaliação do trabalho e das ações do próprio Cemit pela crítica especializada.O primeiro dia foi todo ocupado por variadas e informativas palestras. George Burggess, da Flórida, Matthew Broadhurst, da Austrália, e Geremy Cliff, da África do Sul, relataram os problemas enfrentados e as soluções encontradas em seus países de origem. Fábio Hazin, Otto Gadig, Rosangela Lessa e eu falamos do problema no Brasil e em Recife e na necessidade de se preservar os tubarões, fundamentais para o equilíbrio e a saúde do ecossistema marinho.É interessante mencionar a diferença de abordagem das palestras ministradas em Recife daquelas que ocorrem no resto do Brasil. Quando estive em Recife no mês de abril, onde realizei três palestras, já havia sentido tal diferença. Quando falamos em ataque de tubarão para um público carioca, paulista ou mineiro, a percepção que se tem é de que o tema abordado está bem longe da realidade vivida por todos nós. No entanto, quando se está em Recife tudo muda de figura; existe um perigo real para os banhistas e surfistas. A mudança de abordagem é ainda mais intensa quando se tem na platéia, como ocorreu na palestra que dei nesse Workshop, a presença de três vítimas de ataque de tubarão nas praias de Recife, entre eles o banhista que em maio perdeu a mão e a perna na praia de Piedade.No segundo dia houve pela manhã mais algumas palestras. O Oceanário de Pernambuco falou sobre as campanhas de educação, o Corpo de Bombeiros descreveu as ações de vigilância e fiscalização e o IML mostrou as desagradáveis fotos de cadáveres presumidamente atacados por tubarões. Foram ainda apresentados dois sistemas de proteção eletromagnética criados para uma possível (não comprovada) proteção parcial de algumas áreas de praia.Na parte da tarde, os especialistas-palestrantes fizeram suas análises e recomendações pertinentes às medidas adotadas pelo Cemit, houve uma reunião aberta do mesmo e posteriormente passou-se à discussão e ao fechamento do Workshop.Integrantes do Projeto Praia Segura, que reúne surfistas e vítimas de ataque, pressionavam a todos por uma medida imediata para solucionar o problema dos ataques, incluindo a adoção de redes para capturar os tubarões. Ainda que seja compreensível tal desejo, foi colocado para eles que infelizmente, quando se trata da natureza, uma solução imediata e confiável não existe. Como bem disse George Burgess, que é o curador do Arquivo Internacional de Ataques de Tubarões, pode-se com soluções de médio prazo amenizar o problema e diminuir o número de ataques, mas acabar com eles é impossível. Ao entrar no mar, está-se aventurando em um ambiente selvagem onde o tubarão está em seu meio e ocupa o topo da cadeia alimentar.O uso de redes de proteção, redes de exclusão, ou mesmo redes rígidas nas aberturas das áreas protegidas por arrecifes, foram, de forma bastante contundente, desaconselhadas por todos os especialistas, incluindo o Geremy Cliff, da África do Sul, e o Matt Broadhust, da Austrália, em cujos países tal medida é adotada há décadas. Destacaram, como contraproducente, o forte impacto ambiental e o alto custo de implantação e manutenção dos equipamentos. George Burgess, dos EUA, país que não adota essa medida, acrescentou que essas redes estão ultrapassadas por serem muito antiecológicas, pois matam peixes, tubarões, golfinhos, tartarugas e outros animais absolutamente inocentes.Abro aqui um parênteses para oportunamente relatar um recente ataque mortal na Austrália e sua repercussão. Após de ter sido atacado por dois grandes tubarões brancos no sábado, dia 10 de julho, um surfista de 29 anos não resistiu aos graves ferimentos e morreu. Foi o sexto ataque fatal de tubarões em águas australianas desde 2000. Com o ataque de sábado, foram retomados os apelos para a colocação de redes nas praias mais populares. Mas a coordenadora nacional da Sociedade Australiana de Conservação Marinha, Kate Davey, disse que as redes são uma reação excessiva e que elas põem em risco a vida de outros animais, como baleias, golfinhos, tartarugas e focas. Em vez disso, ela defende que os banhistas e surfistas deveriam ser ensinados sobre os riscos representados por tubarões. "O que precisamos de verdade é uma campanha de educação para ensinar as pessoas como conviver com os tubarões." O irmão da vítima apelou às autoridades para que poupem a vida dos animais. Para ele, "matar os tubarões seria um ato de vingança sem sentido".A pesca seletiva com fins científicos, que faz parte do programa de pesquisa e monitoramento dos tubarões, e já estava provocando muita polêmica na mídia e em diversos grupos de interesse, antes mesmo do Workshop, como não podia deixar de ser, gerou discussões em torno de suas motivações. As razões para tais medidas foram apresentadas por Fábio Hazin, diretor do departamento de pesca da UFRPE, e aceitas por todos os especialistas-palestrantes. Concluiu-se que a pesca seletiva, cujo objetivo não é absolutamente caçar e extinguir os tubarões, é inevitável para se obter um maior conhecimento local das espécies envolvidas nos ataques __ cabeça-chata e tintureira. Geremy Cliff, baseado em experiências na África do Sul, recomendou a utilização de anzóis maiores para tentar selecionar ainda mais o alvo da pesca. Sua recomendação foi aceita pelo Cemit. Eu recomendei tirar o espinhel do fundo e colocá-lo à meia-água, já que as espécies até então capturadas eram quase todas bentônicas (com hábitos de fundo) e o objetivo da pesca era capturar espécies pelágicas. Com o uso do espinhel à meia-água, em princípio, evita-se a captura dos peixes de fundo. Minha recomendação também foi aceita pelo Cemit.Com relação à polêmica da pesca seletiva, ainda que não seja o caso das espécies alvos, vale elucidar que o IBAMA, o CITES e a IUCN, proíbem ou recomendam a proibição da captura das espécies ameaçadas de extinção, exceto para fins científicos. É importante também esclarecer que a previsão de captura máxima em um ano é de até 100 indivíduos, número que está longe de ser impactante sobre as respectivas populações locais.A recomendação unânime dos especialistas foi dar ênfase nas campanhas de educação e conscientização da população, com foco nos jovens e crianças e, especialmente, para a parcela mais carente e com acesso restrito aos meios de comunicação, já que à ela pertence boa parte das vítimas de ataque. Na verdade, o Cemit já tinha programado (e foi executado no sábado, dia 10) a distribuição, por estudantes, de milhares de folhetos nas praias do Pina, Boa Viagem e Piedade. Nesses folhetos estão assinaladas as áreas sujeitas a ataques de tubarão e as orientações pertinentes.Fiz ainda duas recomendações que não foram aceitas pelo Cemit, por motivos diversos que valem ser comentados.1 - Recomendei, como também o fez Geremy Cliff, cancelar a proibição do Surf. Além de sabermos que, para os adolescentes, o que é proibido é ainda melhor, essa recomendação também se baseou no fato que os últimos ataques a surfistas ocorreram nos horários em que os guardas-vidas, responsáveis pela fiscalização e apreensão das pranchas, não estão mais atuando. Ao evitar a presença dos guardas-vidas, os surfistas se colocam em risco de não haver ninguém para resgatá-los em caso de ataque. O Comit não aceitou essa recomendação por achar que os custos financeiros e de imagem para a Cidade de Recife seriam muito altos caso permitissem o surf e o número de ataques aumentassem.2 - Recomendei que o Governo do Estado destinasse mais verba para o Corpo de Bombeiros, para que o mesmo pudesse comprar mais equipamentos e dar um treinamento mais intensivo de resgate e socorro médico. Minha recomendação se baseou em dois dados: 1º - as estatísticas mostram um índice de fatalidade de 36% em Boa Viagem. Comparado com a média mundial, de 12%, e com o índice dos EUA, de apenas 2%, percebe-se que a taxa de fatalidade em Recife é, disparada, a mais alta do mundo. 2º - sabemos, por comparação com a Flórida, campeã mundial em número de ataques (311 entre 1990 e 2003), porém com o mais baixo índice de fatalidade (1%), que muitas vezes a diferença entre a vida e a morte da vítima de ataque está na agilidade do resgate e no correto atendimento de primeiros-socorros. É claro que a compra de equipamentos de proteção individual (shark shield) para os salva-vidas efetuarem um resgate também é importante, mas está-se falando aqui de equipamentos e treinamentos para o resgate e os primeiros-socorros das vítimas de ataque. Por incrível que pareça, o Comit não aceitou a recomendação porque o próprio pessoal do Corpo de Bombeiros alegou estar muito bem treinado e equipado e, por essa razão, prescindiria de mais verba. É a única entidade pública que eu conheço que recusa um aporte de recursos adicionais.Cabe aqui uma última posição pessoal a respeito da discussão envolvendo opiniões e interesses conflitantes. Há uma enorme diferença entre estar no meio do problema e fora dele. Criticar as medidas tomadas pelo Cemit, estando a quilômetros de distância, é muito fácil e confortável. Ao participar das discussões, inserido no meio e sofrendo as mesmas pressões, tem-se a verdadeira dimensão do problema enfrentado e da real responsabilidade de se enunciar e defender uma posição, ainda que essa não seja a mais popular.*Marcelo Szpilman, Biólogo Marinho formado pela UFRJ, com Pós-Graduação Executiva em Meio Ambiente (MBE) pela COPPE/UFRJ, é autor do livro GUIA AQUALUNG DE PEIXES, editado em 1991, de sua versão ampliada em inglês AQUALUNG GUIDE TO FISHES, editado em 1992, do livro SERES MARINHOS, editado em 1998/99, do livro PEIXES MARINHOS DO BRASIL, editado em 2000/01, do livro TUBARÕES NO BRASIL, editado em 2004, e de várias matérias e artigos sobre a natureza, ecologia, evolução e fauna marinha publicados nos últimos anos em diversas revistas e jornais e no Informativo do Instituto. Atualmente, Marcelo Szpilman é diretor do Instituto Ecológico Aqualung, Editor e Redator do Informativo do citado Instituto e membro da Comissão Científica Nacional (COCIEN) da Confederação Brasileira de Pesca e Desportos Subaquáticos (CBPDS).