Talvez como confirmação ao pessimismo com que a SOSEF - Sociedade Santamariense de Engenheiros Florestais (de Santa Maria, Rio Grande do Sul) vislumbra o futuro do setor florestal gaúcho, já agredido por medidas como a "não reposição florestal" patrocinada pelo Código Florestal Estadual a um expressivo número de consumidores de lenha e de carvão vegetal, deparamo-nos com uma preocupante notícia veiculada na edição de número 12 do "AgirAzul" (out/nov de 96). Nela, o autor, Biólogo Glayson A. Bencke, denuncia a ampla campanha iniciada pela AFUBRA (Associação dos Fumicultores do Brasil) junto à opinião pública - incluindo o apoio já garantido de alguns Deputados Estaduais - no sentido de obter a liberação legal para que os fumicultores possam explorar mais matas nativas. Para tanto, buscam a alteração do artigo 7º da Lei 9.519/92, visando tornar possível o corte de matas nativas secundárias no Rio Grande do Sul. Motivo alegado: resolver o problema da escassez de lenha para a secagem do fumo na região do Vale do Rio Pardo!
Com base em argumentos tecnicamente contestáveis e desprovidos de base legal, AFUBRA justifica que, por um lado, a autorização pleiteada serviria para legitimar uma situação já existente na prática, qual seja, o uso crescente de lenha oriunda de matas nativas para a secagem do fumo; e, por outro lado, que o impacto ambiental decorrente dos desmatamentos não seriam significativos a nível estadual, visto que as propriedades rurais localizadas na região em questão possuem, em média, aproximadamente 17% de suas áreas cobertas com vegetação nativa!
Com relação ao primeiro argumento, é surpreendente que a própria AFUBRA alegue que há carência de lenha para uso nas estufas dos fumicultores. Aquela Associação há muitos anos propagandeia, até mesmo junto a crianças de Escolas da rede pública, que desenvolve programas modelares de reflorestamentos, através dos quais são plantadas anualmente centenas de milhares de mudas de espécies florestais diversas - principalmente exóticas para uso como lenha - através dos pequenos e médios produtores rurais plantadores de fumo, seus fornecedores. Como, então, aceitar o argumento de que falta lenha para este setor? A não ser que durante todos estes anos os plantios anunciados tenham sido insuficientes para atender a demanda, não há como não pensarmos que os propalados plantios não passaram de distribuição de mudas - há uma grande diferença entre distribuir mudas e plantar mudas, o que exige tempo e dedicação dos agricultores. Legitimar um fato existente? Ora, isto é reconhecer o descumprimento das limitações impostas pelo nosso Código Florestal, que valem para todos os cidadãos que habitam este Estado. Ao que consta, em diversas localidades do Rio Grande do Sul também há necessidade de lenha, que quando não disponível é trazida de outras partes, e não se tem conhecimento de que as atividades que demandam lenha nestes locais estejam sendo viabilizadas pelo uso da mata nativa.
No que se refere a alegação de que as propriedades rurais do Vale do Rio Pardo possuem em média 17% de cobertura vegetal, fato que permitiria a exploração das suas florestas silvestres sem agredir ao meio ambiente, forçoso se faz esclarecermos aos fumicultores que, na realidade, este é um dos principais motivos que derrubam por terra a sua pretensão: na verdade, o índice de 17% está abaixo do que a Lei 4.771/65, em seu artigo 16º, define como reserva florestal mínima, ou cobertura arbórea localizada: na região Sul do Brasil, somente são permitidas as derrubadas de florestas nativas, primitivas ou regeneradas, desde que seja mantido o limite mínimo de 20% da área de cada propriedade com cobertura arbórea localizada, excetuando-se deste limite (ou seja, nele não incluídas) as florestas de preservação permanente (artigos 2 e 3 da mesma Lei). Não é esta, portanto, a realidade da região fumicultora, com o agravante de que, pelas próprias características topográficas da região do Vale do Rio Pardo (onde predominam os cerros, com diversas nascentes e cursos d'água), certamente uma significativa parcela dos 17% referidos como cobertura vegetal média das propriedades rurais constitui-se de vegetação de preservação permanente, imune ao corte.
Felizmente, a Lei 9.519/92 praticamente eliminou a possibilidade legal de serem efetivados "cortes rasos" de matas nativas no Rio Grande do Sul; prevê apenas o corte seletivo anual de um número limitado de exemplares arbóreos, para cada propriedade rural, e também o "descapoeiramento" de áreas em processo de regeneração, desde que ainda no estágio ecológico de capoeira - prática vedada para a vegetação nos estágios secundário e "climax". O reconhecimento técnico de qual o estágio atual de uma vegetação, em termos de sua posição fitosociológica dentro do processo natural da sucessão florestal, é uma prática que exige conhecimentos botânicos e ecológicos inerentes aos profissionais habilitados pela Ciência Florestal; temos conhecimento da ocorrência de muitos equívocos por parte dos técnicos responsáveis pela emissão das "licenças de descapoeiramento", hoje sob responsabilidade do DRNR/SAA, normalmente por não terem os conhecimentos que os habilitam a reconhecer os exemplares constituintes da capoeira (os quais variam conforme o sítio ou de acordo com a região fisiográfica onde se situam); em decorrência, um número expressivo de áreas de matas secundárias e de matas adultas têm sido eliminadas sob licença oficial, como se fossem "capoeiras" - normalmente aquelas cuja composição florística é constituída por indivíduos "não-comerciais" ou mesmo por possuirem má conformação - fatores de definição subjetivos e que decorrem das condições naturais dos sítios onde ocorrem estas matas.
Imagine-se, nesta situação, o que significaria autorizar também o desmatamento das florestas secundárias, na forma gestionada pela AFUBRA, cujo reconhecimento botânico exige ainda maior complexidade para a definição de ser ou não ser uma mata incluída neste estágio ecológico: seria praticamente decretar o retorno de todas as formas de desmatamentos no Rio Grande do Sul, pela impossibilidade concreta de se controlar efetivamente se, e somente se, as capoeiras e as matas secundárias seriam cortadas.
A situação exige, pois, um firme posicionamento de toda a sociedade gaúcha, no sentido de repudiar a intenção corporativista da AFUBRA, única beneficiária da pretendida eliminação do nosso patrimônio florestal remanescente sob a forma de lenha para a secagem do fumo.(Fevereiro de 1997)