Nossa recente viagem ao pantanal constituiu-se para mim em oportunidade ímpar para complementar informação . Aceito o desafio de contribuir com o pouco de força que tenho para desencadear um processo de inversão nas tendências que hora alimentam as chamas do holocausto biológico que envolve o Brasil e, em especial, a Amazônia e o Pantanal.
Em ambos os vôos, especialmente no vôo de volta , entre a Fazenda Caiman e Campo Grande, dei-me conta da indescritível extensão e absurdo das queimadas na região. Elas são sistemáticas e atingem o todo. Onde sobram manchas livres, é por desleixo e ineficiência, não por falta de vontade. No chão, durante as voltas que demos na Fazenda, pude avaliar a dinâmica da depredação. Ela é muito mais grave do que podia imaginar e já apresenta muitos estragos irreversíveis. Encontramo-nos diante de uma paisagem em plena demolição. O ponto de não retorno está muito próximo. É um espetáculo deveras triste e desesperador. Tanto mais desesperador, quanto parece grande a dificuldade em se conseguir uma mudança de mentalidade naqueles que são os responsáveis por aquela devastação.
O fogo, especialmente quando repetido todos os anos, como hora acontece nas fazendas do Pantanal, funciona como um potente herbicida e faunicida seletivo. Algumas espécies, como as gramíneas, são favorecidas, outras sobrevivem com mais ou menos dificuldade, mas muitas espécies desaparecem de todo.
Entre as plantas, aquelas que são mais rasteiras e de crescimento lento, com pouca capacidade de regeneração, desaparecem de todo após poucas passagens do fogo. Por exemplo, cactáceas, tanto globosas como columnares, que constituem algumas das espécies mais interessantes e valiosas, e que já estão quase todas na lista das espécies em extinção, estão entre as primeiras espécies que desaparecem. Mais grave é o fato de serem quase todas as espécies desta família, espécies endêmicas, com ocorrência em áreas extremamente limitadas. O mesmo se aplica a algumas das orquídeas, especialmente aquelas que crescem no chão ou em pouca altura. Quando o fogo devasta complexos arbustivos densos, o calor que atinge as copas é muitas vezes suficiente para torrar mesmo epífitas que se encontram até dez metros do solo. Semelhante é o destino de muitas das espécies da família das bromeliáceas, tão preciosas quanto as orquídeas.
Se observarmos com atenção as espécies arbustivas e arbóreas, que aparentemente sobrevivem ao fogo, notaremos que a longo prazo, se a prática do fogo continuar sistemática, também estas estarão destinadas a desaparecer. A carbonização e calcinação do tronco, progridem até que o tronco seja destruído pelo fogo e a árvore caia, sendo então consumida pelo fogo seguinte. Muitos exemplos disso já se podem ver nesta fazenda. Nota-se que o fogo tem sido incrementado em anos recentes e mais em alguns lugares que em outros. Se continuar o ritmo atual de queimadas, o ecossistema ficará tremendamente empobrecido, chegando rapidamente a uma situação irreversível. As manchas hoje ainda mais ou menos intactas e que servem de banco genético para o repovoamento do que foi dizimado também desaparecerão progressivamente.
Quanto à fauna, a situação é igualmente grave, especialmente no que se refere a espécies menos visíveis, que o leigo não vê , por não serem espetaculares em seu aspecto ou por viverem escondidas ou terem hábitos noturnos. Entre estas temos os répteis. O caso mais trágico é o do jabuti, nossa tartaruga terrestre. Ela não tem como escapar do fogo. Se está, caminhando, pastando, comendo frutas, carcaças, excrementos, não consegue caminhar com velocidade suficiente para escapar. Se está dormindo, o que costuma fazer em complexos herbáceos densos ou debaixo de folhas secas, será torrada viva igual. Outros répteis como iguanas e, sobretudo lagartixas de pequeno porte, também não conseguem escapar do fogo. O mesmo acontece com muitas cobras e serpentes. Os anfíbios, especialmente pererecas e sapos, são igualmente vulneráveis.
Todos aqueles pássaros que fazem seu ninho a pouca altura em arbustos ou em capim denso, como por exemplo o Tico-Tico e muitos Beija-Flores, que fazem seus ninhos em alturas de um a três metros, estarão completamente perdidos se pegados na época da nidificação.
Os maiores estragos, são causados entre os insetos. Também entre estes, alguns são propiciados. É o caso dos gafanhotos, que encontram melhores condições de desova em solo calcinado e mais pasto fresco logo após, enquanto que outros são totalmente destruídos onde passa o fogo. Também as formigas cortadeiras são propiciadas. Os mais vitimados são os insetos noturnos. Passam o dia escondidos em folhagem densa ou nas folhas secas sobre o solo, outros, sobre troncos, mimetizando a superfícies destes. Á noite, se o fogo continuar, insetos de áreas não queimadas são atraídas pelo fogo em vôo suicida.
Entre os insetos está o maior número de espécies ainda nem conhecidas pela ciência e, entre eles, temos também grande número de endemismos. O leigo não se imagina a extensão dos estragos diretos e indiretos do fogo num ecossistema.
Numa paisagem tão extensamente devastada pelo fogo, como as que agora se vêem no Pantanal, mesmo aqueles animais que sobrevivem quando conseguem escapar ás chamas, terão que concorrer com seus semelhantes nas pequenas manchas de vegetação não queimada, sobrecarregando estas. No caso de pássaros insetívoros, sua base de alimentação fica enormemente reduzida. Insetos polinizadores, abelhas, arapuãs, mamangavas, borboletas, quando sobrevivem diretamente ao fogo, podem vir a perecer pouco após por falta de recursos de néctar e pólen. O verde exuberante, que pode aparecer após as primeiras chuvas depois do fogo, engana as pessoas que não têm o hábito de observar atentamente a natureza . Elas não conseguem perceber o incrível empobrecimento do ecossistema, o irreversível de grande parte dos estragos.
Por isso, se quisermos chegar a uma fazenda pantaneira realmente “ecológica”, não poderemos esperar muito para mudar o sistema. Se o fogo continuar por mais alguns anos, os estragos não serão mais reparáveis. Para chegarmos rapidamente a um novo caminho teremos que, inicialmente, procurar entender as verdadeiras causas do atual desastre.
Dois são os fatores decisivos nas cabeças das pessoas envolvidas, tanto os peões, como os próprios fazendeiros:
O primeiro é a cosmovisão predominante no Brasil, uma cosmovisão que nos vem da cultura ibérica, com seu antropocentrismo cristão, agravado por quase um milênio de cultura muçulmana. Interessante é o conceito de “mato”. Enquanto nas culturas germânicas, as palavras que designam bosque, floresta, complexo arbustivo e outros, são sempre de conotação emotiva, “mato” em português, as vezes “monte” em castelhano, são conceitos de conotação pejorativa. “mato”, para muitos, é coisa suja, feia, hostil; perigosa, indesejável, algo que deveria desaparecer. Entretanto, apesar da universalidade desta visão entre nós, ela só, não desencadearia os estragos que hoje constatamos. A inércia se encarregaria de salvar muita coisa. O verdadeiro desastre começou com aquilo que hoje designamos “progresso” e “desenvolvimento”. O pensamento básico deste novo contexto cultural faz com que queiramos sempre atingir eficiência Máxima em todos os nossos empreendimentos, eficiência esta, medida em termos de fluxo de dinheiro apenas, e quase nunca em termos de harmonia, sustentabilidade, integração, beleza, riqueza, de vida, etc.
No caso de uma fazenda no Pantanal, se o alvo é ter o máximo de animais bovinos por área para um máximo de capital e faturamento, então, o que hoje acontece ,é apenas lógico. O boi precisa de um máximo de pasto, coisa que o fogo favorece. Este favorecimento, no entanto, é a curto prazo. O fogo, além dos estragos acima mencionados quanto á fauna e flora, causa outros estragos igualmente irreversíveis para a fertilidade do solo . Além da erosão que ocorre pelo desnudamento e que pode ser considerável mesmo em áreas relativamente pouco inclinadas, o fogo contribui também a uma perda direta de nutrientes minerais. Estudos realizados em análises de cinzas e com queimadas controladas demonstram que a própria fumaça pode carregar até 60% dos nutrientes contidos na biomassa queimada. Da cinza que fica no chão, grande parte é levada pelas torrentes de chuva. Para termos uma idéia do grave que podem ser estas perdas, especialmente em se tratando de solos do cerrado (as áreas não inundáveis no Pantanal são solos de cerrado ), que são solos muitas vezes pobres em nutrientes e com pouca capacidade de retenção de nutrientes, uma queimada, que consumisse 20 toneladas de biomassa seca por hectare, poderia levar a uma perda 400 kg de nutrientes minerais. A mesma ordem de magnitude de uma boa adubação mineral em forma de adubos sintéticos. A baixa produtividade da pecuária do cerrado e do Pantanal não justificam, em termos econômicos atuais, adubações desta ordem.
Portanto o fazendeiro que quiser manter a fertilidade e produtividade de sua fazenda, que não quiser tratá-la apenas como uma mina, deverá abandonar o fogo logo que possível.
Em fazendas muito grandes seria fácil decidir não insistir na carga máxima de gado possível a curto prazo pelo fogo. A produção seria menor, mas o capital estaria mais preservado. Isto seria tanto mais fácil quando se trata de fazendeiros que têm outras fontes de renda. Como este caso é o caso desta fazenda, por que não baixar a presente carga para talvez a metade ? O ecossistema seria menos agredido. Com menos fogo, poderíamos logo iniciar estudos para criações alternativas, mais adequadas ao ecossistema. Por exemplo, poderiam ser iniciados logo estudos para verificar como se comporta a população de veados, cervos, antas, emas, capivaras, pacas, jacarés, com vistas ao aproveitamento futuro destas espécies, em esquema de “game ranching”, como já sucede na savana africana. A preservação dos complexos florísticos terá certamente efeito benéfico para a fauna aquática. Hoje, a pesca no Pantanal é feita de madeira totalmente descontrolada, quase sempre em esquema de rapina. Porque não estudar meios de aproveitamento racional e sustentável? Fazendas que tem energia elétrica poderiam congelar peixe e vendê-lo aos centros urbanos, em vez de permitir a pesca descontrolada.
Como já ventilamos em nosso último encontro, talvez possamos, em 1989, fazer viagens á Venezuela (Hato Flores Moradas) e á África. Pessoalmente estarei na República da África do Sul em julho de 1989, onde, além de trabalhos com fruticultores, visitarei várias fazendas que trabalham com animais silvestres. Animais silvestres, como demostra Hopcraft no Kenya, se bem manejados e aproveitados em esquema de desfrute sustentável, para carne e peles, podem render até dez vezes mais que gado, sem que seja necessário recorrer ao fogo e sem degradação do ecossistema.
E, por que não introduzir outros herbívoros que tem hábitos de pastoreio diferente da rês e que complementam os hábitos desta, p. ex. muares, burros e cavalos, cabras e ovelhas? No Nordeste, os burros foram quase exterminados para exportação de sua carne á Europa.
Com um pouco de imaginação e pesquisa de mercados, especialmente no exterior, muitas atividades novas, não destrutivas, poderão surgir, criando interessantes frentes de trabalho para a população local.
Isto poderia concluir pequenas indústrias e artesanato-frigorífico, curtume, confecção de artefatos de couro, etc. Um curtume bem feito não precisa poluir, ao contrário, produzirá excelente matéria-prima para uma agricultura sã.
Seria igualmente importante estudar possibilidades de fazer fenação e silagem, em parte até de pasto nativo, nas épocas em que sobra, para alimentação complementar do gado e demais espécies em épocas de carência. Hopcraft faz algo parecido para seus animais silvestres, ele corta pasto natural quando sobra e faz feno. Uma fazenda com uma boa rede de estradas deveria ter condições de, pelo menos, iniciar experimentação nesta direção.
Futuramente, poderiam também ser feitos experimentos de introdução de espécies de herbívoros africanos, tais como impala, orix, eland, gazelas. É claro que haverá protestos veementes de alguns ecologistas mais radicais. Porém, acaso o gado, cavalos, cabras, ovelhas, burros, búfalos, cachorros, gatos, etc., inclusive nós humanos, não somos todos exóticos? Fundamental é que os esquemas de produção sejam sustentáveis e que respeitem o ecossistema.