Um radical livre chamado Zeno

Conheci Zeno Simon na AGAPAN- Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural há coisa de 13 anos atrás. Logo notei que além daquela aparência einsteiniana, havia muito conhecimento e experiência da e na questão ambiental, resultado do seu longo currículo profissional dentro da CORSAN e, principalmente, da sua curiosidade inata. Outro aspecto imediatamente notável era aquela sua usual pitada de humour, talvez aprendida na sua passagem por Birmingham, Inglaterra - ou pela leitura de George Bernard Shaw?

Zeno era o tipo do cara que se recusava a nadar em águas rasas, justamente por haver menos volume a explorar. Tinha verdadeiro horror a explicações simplistas para fenômenos complexos - como em geral são os processos ecológicos. Não tinha nenhuma paciência e condescendência com os ditos especialistas, os  gurus da undécima hora, sempre prontos a oferecerem seus serviços para a solução curta, grossa e definitiva para este ou aquele problema, contrariando o bom senso e a história: Zeno não cansava de lembrar que, via de regra tais esquemas davam com burros n’água, ou ao menos se tornavam quasi-soluções (parafraseando Eugene Schwartz* - nota no final), criando problemas ainda piores.

Casos emblemáticos em que se envolveu foram o do Herr Doktor P. Krauss, “o homem das dioxinas” importado e  o do lixólogo-mor em Terra Brasilis.

O primeiro, cuja atuação ginasiana junto a questão RioCell já foi motivo de vários artigos desta publicação, dispensa maiores cuidados. O segundo, um tal de Luis Mário, aqui aportou com seu saco-de-gatos tecnológico a uns 7 anos atrás. Após uma mirabolante palestra no DMLU, quando as perguntas e críticas feitas pela AGAPAN ficaram sem resposta, Zeno não se surpreendeu nem um pouco que o Grão-Mestre do Lixo firmasse contrato com Prefeitura para instalar um “pirolisador” de lixo hospitalar - aparelho de dúbia concepção física e catastrófico record de desempenho.

Para encurtar uma longa novela, devemos lembrar que o abandono daquele projeto, que teria funestas conseqüências sobre a qualidade do ar da região Norte da cidade, se deveu fundamentalmente ao incansável Zeno. Em alguns meses, nas suas horas vagas, conseguiu reunir farto material de suporte sobre a questão da incineração e do lixo hospitalar. Contatou a EPA nos EUA, que enviou relatório completo sobre a situação dos incineradores.

Escreveu ao Reitor da UNICAMP, para ver se esta endossava as atividades extracurriculares do seu então prof. Luis Mário, pois o show de slides que este exibia tinha o logotipo daquela universidade. Ligou para algumas prefeituras de São Paulo que já haviam caído no canto da sereia da solução fácil e limpa, para confirmar as “informações de cocheira” (eis uma expressão muito usada pelo Zeno, talvez indicativa de um Sr. X ambiental) sobre o mau funcionamento das engenhocas.

Depois de tudo isso e mais um pouco, minha atuação (era na época representante da AGAPAN no Conselho do DMLU) na CPI instalada na Câmara Municipal quase se limitou a resumir e estudar o volumoso dossiê compilado por Zeno.

Lembro que na noite anterior ao primeiro depoimento, fui sabatinado por ele até altas madrugadas, não só sobre o dossiê mas também sobre as possíveis perguntas e pontos fracos da nossa argumentação.

O irriquieto Zeno também era, de certa forma, partidário da estratégia da “guerrilha ambiental”, tão bem desempenhada por Sebastião Pinheiro.

Tinha certa afinidade pelo Nordeste, onde atuou, ainda que suplementarmente, na questão do pólo da SALGEMA. Também esteve em Fernando de Noronha mais recentemente. Costumava ser consultado sobre vários temas por ecologistas de toda a parte. Passava para a AGAPAN dicas sobre futuras “bombas ambientais” já em construção nos porões da tecnoburocracia.

Não devemos deixar de lembrar sua longa atuação no SITEL do Pólo Petroquímico, onde se confunde o Zeno profissional (engenheiro-químico) com o Zeno ecologista. Se todos os ecologistas concordam que o Pólo localizado aonde esta é um anátema (fica a montante de mais ou menos 2 milhões de habitantes e ao lado de um Parque Estadual), também não poderíamos, após nossa derrota na discussão sobre sua localização, deixar de exigir que fosse o mais seguro e “limpo” possível. O SITEL - Sistema de Tratamento de Efluentes Líquidos - é (ou pelo menos era) reconhecidamente um dos mais avançados do mundo. Recebia visitas freqüentes de técnicos forasteiros e deu origem a  um grande número de artigos científicos. Fica difícil calcular a importância de Zeno neste contexto, mas posso testemunhar o seguinte: há alguns anos encontrei um trabalhador do SITEL que disse ser Zeno uma figura respeitada e até certo ponto temida naquela organização. Isto porque ele constumava “dar incertas” aos fins-de-semana ou na calada da noite, surpreendendo operários e controladores dorminhocos ou desatentos... Não que Zeno fosse do tipo militarista, mas sem dúvida não se esquecia dos 2 milhões de moradores à jusante da  planta e de sua responsabilidade.

Partilhávamos algumas crenças, algumas lúdicas, outras até tristes. Por exemplo, a impaciência com as intermináveis reuniões do Movimento Ecológico. De outra parte, a impressão de que o aparato ambiental de Estado é mera fachada para o descaso e até a má-vontade do poder instituído para com o meio ambiente. Mesmo assim,  Zeno personificou a idéia de que é possível fazer parte da estrutura tecnoburocrático do Estado e ainda assim manter os neurônios funcionando, manter a integridade intelectual e mesmo moral num esquema que via de regra defende interesses privados, ou pelo menos, de uma minoria social mais esperta. Volta e meia nos confidenciava em off os aspectos mais sórdidos do poder com os quais se defrontava enquanto profissional e de sua incapacidade de atuar como ecologista nestas situações, sob risco de ser despedido ou posto a descascar batatas numa repartição menos iluminada.

Poderia me alongar indefinidamente, mas creio que numa hora destas só me resta citar Berthold Brecht, quando este disse que dentre os vários tipos de pessoas, há aquelas que são imprescindíveis. Assim foi, e para nós da AGAPAN ainda é, Zeno Simon.  

O autor é Eng. Agrônomo, Conselheiro da AGAPAN. Trabalha na Fac. Agronomia da Univ. Passos Fundo. Contatos - E-mail: cgtorn@samurai.voyager.com.br