Por ocasião do recebimento do título de Cidadão de Porto Alegre, Carlos Alberto Dayrell profereriu as seguintes palavras:
Caros Amigas e Amigos:
Eu fico aqui pensando se por acaso vocês que aqui estão, vereadores da Câmara Municipal de Porto Alegre, representantes da Faculdade de Direito que está comemorando o centenário de fundação da instituição, militantes do movimento ecológico gaúcho representados pela Coolméia, Pangea, União pela Vida, Núcleo dos Ecojornalistas, Fundação Gaia e Agapan, que merece lembrar, ontem fez 27 anos de fundação, com uma trajetória reconhecida não só aqui no Estado mas em todo Brasil e inclusive no Exterior.
Eu fico pensando se, por acaso, vocês que aqui estão presentes, possam ter idéia do que representa este momento para o cidadão Carlos Dayrell, um desconhecido nos sertões de Minas Gerais, que saiu de Montes Claros, no norte do Estado, um sertanejo que se define no dizer de Guimarães Rosa: Sou só um sertanejo. Nestas altas idéias, navego mal.
E quem é o sertanejo?
O sertanejo é um homem criado num ambiente onde o contrato natural que ele estabelece com o seu meio é mediado pelo respeito com a natureza. E pode ter sido um fragmento deste sentimento, lapidado pelo sentimento gaúcha na sua relação com a imensidão dos pampas, que fez o ainda menino mover-se por um sentimento natural, tornar-se sem saber e sem querer, através de um gesto coletivo, um símbolo de retorno a uma sociedade que se propõe estabelecer um novo contrato com o seu meio.
Pois é um destes sertanejos que está aqui nesta cerimônia, que está aqui para receber o título de Cidadão de Porto Alegre onde, com muita responsabilidade e carinho, vai levar de volta para o lugar onde vive, quem sabe um elo invisível traçado hoje por vocês, um elo invisível mas permanente de amor por uma causa que é muito maior que a soma de todos nós.
Vocês não podem imaginar a emoção que isto faz comigo e na verdade é até difícil entender como hoje estou aqui nesta cerimônia. Certamente, para eu estar aqui hoje muita coisa mudou nos corações das pessoas que lidam diariamente com decisões que influenciam a vida de centenas de milhares de cidadãos, inclusive a minha. Muita coisa mudou pois, quando sai daqui em 1976, de volta a Minas Gerais, um ano e meio após o episódio da subida na árvore, minha mãe ainda carregava consigo a tensão de uma possível represália da ditadura militar contra o seu filho.
Episódio que compartilho com Marcos Sarassol, Teresa Jardim, com a imprensa de Porto Alegre, com os militantes da Agapan, com centenas de pessoas, estudantes, populares que anonimamente lutaram naquele dia pela preservação da árvore, não se curvaram diante do aparato militar e que, de lá para cá, provocaram um salto na luta pela defesa, não só das árvores isoladamente, mas em defesa da vida em seu sentido mais amplo. Esta homenagem compartilho com todos vocês.
Eu não poderia estar aqui se não fosse os ensinamentos de meus pais que, em 1970, ainda com 17 anos, permitiram que saísse de Sete Lagoas par estudar e trabalhar em Porto Alegre.
Eu não poderia estar aqui se não fosse o carinho do meu irmão Geraldo Dayrell Filho e de toda a família Hiwatashi, ilustres horticultores de Porto Alegre, que me acolheram como membro da família e me estimularam na profissão que segui; eu não poderia estar aqui se não fossem pessoas como José Lutzenberger, Augusto Carneiro, Caio Lustosa, Magda Renner e muitos outros que colaboraram no desenvolvimento da percepção de solidariedade não só com a vida no planeta Terra de hoje, mas uma solidariedade intergeneracional, solidariedade para com a vida das gerações que estão por vir, solidariedade para com as gerações anteriores que souberam nos legar um planeta amplo de possibilidades e de potencialidades.
Solidariedade que se traduz não em grandes feitos mas de um construir diário na busca de sociedades sustentáveis. Sociedades que incluem a intricada e maravilhosa teia de seres vivos onde suas mais de 30 milhões de diferentes espécies de seres vivos a que denominamos de biodiversidade, nos garante a possibilidade de continuidade da vida no planeta Terra.
Biodiversidade que está ameaçada pela ganância de uma economia baseada na exploração dos seres vivos (e entre eles, o homem), na dilapidação dos recursos naturais, onde poucas empresas transnacionais conseguem impor os seus interesses numa escala global, corrompendo governos e legisladores. Temos exemplo no Brasil a Lei das Patentes, que se curva ao permitir a difusão de novos seres vivos criados pelo homem cujos riscos de sua manipulação na natureza ainda são desconhecidos. Biodiversidade que está ameaçada por alguns setores prepotentes ligados à ciência que avalizam sem assinar nenhuma promissória.
Afinal, ao contrário dos produtos químicos, os produtos da engenharia genética não podem ser retirados domercado.
Me vem a mente à imagem do Titanic, saudados pelos setores sociais dominantes da época como insubmergível. Um iceberg o afundou. O mundo ficou perplexo. A engenharia genética está aí. Mal conhecemos a ponta deste iceberg. Então eu me pergunto: o que podemos fazer além de homenagear as pessoas que lutam em defesa da vida em seu sentido mais amplo?