Transgênicos? Uhuu!
Ao patrocinar evento para
surfistas, a Monsanto embala argumentos simplórios em jargão publicitário e
mostra o que pensa dos jovens
por Rafael Evangelista
(rafael@ciranda.net)
Um estereótipo corrente para os surfistas diz que eles não são sujeitos muito espertos e nem muito interessados em algo além de ondas e pranchas. A Monsanto, a multinacional transgênica, deve realmente acreditar nisso. Com o slogan "Transgênicos: só com um mar de informação dá para ter opinião", a empresa foi a principal patrocinadora da 1ª Mostra Internacional de Cultura e Arte Surf, realizada entre 23 e 29 de julho/2004 no pavilhão da Bienal, em São Paulo. O seu objetivo já estava claro no release que distribuiu à imprensa, que diz, "esse evento foi escolhido por concentrar um grande número de jovens formadores de opinião". E, para comunicar-se com esse público, "todo o material e o visual do evento terão (sic) uma linguagem jovem, do universo surf".
De fato, o estande da Monsanto foi construído no formato de uma prancha de surf, assim como o cartaz colocado logo na entrada da mostra, antes que se possa ver qualquer outra coisa. Ao se entrar no espaço da mostra, o estande da empresa também está em primeiro lugar, ao lado de um cinema que exibe filmes sobre surf, uma das áreas mais movimentadas. Quatro modelos, dois homens e duas mulheres vestindo roupas havaianas semelhantes às da organização do evento, recebem os visitantes e entregam um folheto "informativo". Logo na capa do material, junto com o slogan da campanha e o logotipo da empresa, está a frase escrita em linguagem jovem de campanha publicitária: "se liga neste folheto pra ganhar uma prancha do shaper Dick Brewer".
*Promoções e brindes*
O cupom deve ser preenchido dentro do estande da Monsanto, em um sofá também em forma de prancha. Em duas paredes, paralelas, ficam oito pranchas, quatro de cada lado, com monitores exibindo uma apresentação que mistura imagens de praias e da natureza com frases do mantra publicitário em favor dos transgênicos. Quem preenche o cupom - que pede dados como endereço, email e telefone - concorre a uma prancha mas deve responder à pergunta: "Há quantos anos já são consumidos os alimentos originários das plantas geneticamente modificadas ao redor do mundo?" e criar uma frase juntando as palavras biotecnologia, meio ambiente e evolução.
O papel dos modelos é orientar o preenchimento do cupom e dar informações rápidas sobre transgênicos. Pude ouvir uma garota reclamar para um deles: "ah, tem que escrever frase? não quero pensar, posso copiar dele?". "Não, daí não vou te dar o brinde", respondeu o modelo. Ao colocar o cupom na urna todos são recompensados com um pequeno chaveiro-prancha.
*Informações duvidosas*
O tal folheto "informativo" é uma obra à parte, um exemplo das técnicas mais simples de associação de idéias do mundo publicitário. "Tudo o que é desconhecido deixa a gente com o pé atrás. Foi assim quando surgiu o microondas, o celular, o computador. Mas, fale a verdade, hoje você não consegue imaginar sua vida sem essas facilidades. Com os alimentos transgênicos rola a mesma coisa". Ou seja, todas essas tecnologias são tomadas como equivalentes e, se algumas não oferecem risco, as outras também não oferecerão.
O resto do folheto segue no mesmo tom e com a mesma linguagem "jovem". No tópico "Qual é a dos transgênicos ou plantas geneticamente modificadas" a empresa cita como exemplo o Arroz Dourado, o arroz transgênico projetado para estimular a produção de vitamina. Não diz que, até hoje e apesar de muito investimento público, ele se mostrou inviável. Ele possui uma quantidade muito pequena da substância que estimula a produção de vitamina A e boa parte dos especialistas considera mais inteligente incentivar o consumo de alimentos que naturalmente já possuam essa substância.
Já no tópico "Para você ficar desencanado com a segurança alimentar" é dito que "somente alimentos seguros são liberados para comercialização pelas autoridades competentes". Argumenta-se que os transgênicos "são consumidos por milhões de pessoas ao redor do mundo há oito anos" e que nenhum problema foi constatado. O DDT, agrotóxico que teve seu uso amplamente incentivado em meados do século passado, só mostra os seus malefícios à saúde após 15 anos de ingestão continuada. Mas o ponto alto do folheto era mesmo a frase final, em letras grandes: "Uhuu!!! Essa onda é imperdível".
Depois de ler, resolvi então conversar com os modelos que, afinal, estavam ali também para fornecer informações. De acordo com uma delas a maioria das pessoas está interessada na promoção e não se manifesta nem contra nem a favor do uso da tecnologia. Os contrários evitam entrar no estande e não querem ouvir nada. Pergunto, então, o que ela diz quando alguém lhe pergunta o que são os transgênicos. Segundo ela, "são plantas geneticamente modificadas..." - "melhoradas", interrompe um outro modelo - "...das quais são retirados os genes ruins e colocados genes bons, com novas funções". Genes bons, genes ruins, embora simpática ela não me parece muito segura na explicação. Quando tento me aprofundar me diz para entrar no site da Monsanto ou ligar para um telefone de atendimento ao consumidor.
Abordo o modelo que havia interrompido a minha conversa anterior. Pergunto sobre a recepção do público e ele minimiza o número de pessoas contrárias presentes no evento. "São uns dois ou três", diz, "são os naturalistas". Em seguida, afirma que os transgênicos são plantas que não usam agrotóxicos. Penso em questioná-lo sobre a soja Roundap Ready, desenvolvida justamente para receber o agrotóxico da Monsanto, mas resolvo perguntar se já não consumimos transgênicos há bastante tempo. Ele me diz que não, que eles estão proibidos no Brasil. "Mas e a liberação da safra do ano passado...?", questiono. "Não, essa já foi e o que tinha foi bloqueado". Gostaria que ele estivesse certo e que os produtores não tivessem que pagar o dobro em royalties, nesta próxima safra, do que pagaram o ano passado para usar as sementes da Monsanto.
"Legalize já!...??"*
Pensando na questão da legalidade, de fato o modelo pode ter razão. Oficialmente os transgênicos estão proibidos no Brasil, mas o governo faz vista grossa à contaminação das safras - que já atinge outras culturas como milho - enquanto os agricultores são isentos de royalties na primeira safra para depois acompanharem o abrupto aumento no preço de seus insumos.
Ao mesmo tempo, a campanha da Monsanto poderia constituir um outro elo de ligação com os surfistas. Assumindo a substância como ilegal, ela poderia lançar uma campanha no estilo "Legalize já!", como alguns grupos de reggae fazem em favor da descriminalização da maconha. Talvez aí a linguagem jovem soe menos artificial e imbecilizante.
Reproduzido na EcoAgência Solidária de Notícias Ambientais (www.ecoagencia.com.br) com permissão do Autor. Fonte: Planeta Porto Alegre (www.planetaportoalegre.net)